Por Luiz Cláudio Sena
A pétala de uma flor, as asas de uma borboleta e meu filho Ítalo: três coisas muito frágeis. Coisas que devem ser tocadas com cuidadosa atenção, com extremado zelo. Ítalo, dentro de oito dias, fará dois meses de vida. Tem seis quilos e olhos grandes como os do pai. Dorme, mama, faz seu religioso cocozinho e, todos os dias, ali em torno das 9 horas, Vânia dá banho nele. E ele gosta da aguinha quente. Deve fazê-lo recordar dos bons tempos de vida intra-uterina. Tão logo nasceu, cumprimos todo o ritual de vacinas e de exames: aqueles exigidos lá na página 34 da bíblia pediátrica. Nossa pediatra foi logo enfática: “Façam o exame do pezinho completo!”.
De posse do resultado dos exames, aquela alegria de ouvir que “ele não tem nada, pai”. Vale dizer que eu e a mãe não temos mais nome próprio. Eu sou “pai” e ela é “mãe”. Só. De vez em quando, sob o olhar sempre investigativo de Vânia, dou uma saidinha com ele na rua, pra pegar um solzinho. “Cuidado com esse menino!”. E volto pra dentro de casa para flagrar mais um sorriso dele. Ou algum movimento mais terno. Ou um olhar como nunca já visto. Ou ficar comparando a mão dele com a minha. Ou ficar falando aquelas besteirinhas que só pais bobos dizem: “é ti papai, é ti papai”.
Mas…
Logo nos primeiros dias, ouvimos um choro diferente. Um choro que não constava do repertório. Um choro que a mama não resolvia e que fazia sofrer… muito. “Só pode ser cólica!”, diz, peremptória, minha sobra, mulher experimentada. Dez filhos no curriculum. Eu não duvidei dela. Mas tive imensa dificuldade de aceitar que aquele pequeno corpo já fosse capaz de produzir algo que eu jurava só existir em corpo gente grande: cólica.
Apiedados comigo e com a mãe, amigos, parentes e assemelhados fizeram chover dicas e recomendações e conselhos: “façam isso, façam aquilo!”. Noites e mais noites foram dedicadas às cólicas de Ítalo. E só hoje eu vejo que fui muito imprudente em dedicar diversas noites de minha vida lendo, na rua, vendo filmes e afins. Devia ter dormido quando pude. Hoje, quando olho a cama – e ouço seu convite sedutor sussurrado entre os travesseiros –, digo a ela: “Não posso!”. Ali perto, inconsolável no berço branco e azul, Ítalo chora suas dores. E Maurício, com sua apocalíptica maneira de ser, foi logo me dizendo: “Se prepare, meu fi; isso é só o começo!”. Palavras têm poder e profecias tendem a se cumprir.
As cólicas arrefeceram e, mesmo quando vêm, a gente já dispõe de todo um aparato tecnológico, todo um conhecimento sobre as melhores práticas de debelar ou atenuar a dor. Mas – e aqui se cumpre a profecia – há cinco dias, Ítalo – essa caixinha de surpresas – apresentou dificuldades na respiração, secreção nasal, tosse seca e desconfortos mil nas vias aéreas. Nova leva de noites intermináveis!
Nossa pediatra foi enfática: “Levem para internar!”. Saímos com Ítalo do consultório transtornados. E logo ficamos sabendo – depois de algumas andadas – que Ítalo não era o único e que o mal que o afligia chamava-se pomposamente de bronquiolite aguda e que o vírus causador da mesma não se contentara com Ítalo. Mei-mundo de meninos na Cidade do Salvador ocupavam todos os leitos pediátricos. Na clinica, o médico nos disse: “Quer um conselho?”. “Queeerrooo!!”, disse eu. “Vá agora pro Hospital do Subúrbio. Lá seu filho estará bem servido e em boas mãos. Conheço quatro médicos lá e posso lhe assegurar que ali está um porto seguro. Só é um pouco longe…”.
Céticos, visitamos outros hospitais próximos à nossa casa (moramos nas imediações do Dique Tororó). Não havia vagas. Preconceituosos, hesitamos e relutamos muito com a idéia de levar Ítalo para um hospital com o nome de… Subúrbio. Mas, desesperados (não há outra palavra que melhor designe pais com filho recém-nascidos doentes), decidimos seguir o conselho do nosso médico.
“Só é um pouco longe.”
Saímos do Centro de Salvador, chegamos à Cidade Baixa e seguimos rumo ao Hospital do… Subúrbio. No banco de trás, Vânia chorando e Ítalo no seu colo: frágil como uma asa de borboleta ou como uma pétala de rosa, tossindo, com obstrução nasal e chorando também. Um quadro que nem mesmo o mais apocalíptico dos profetas mauricianos poderia pintar. Chegamos numa estrada erma. Só havia mato nas laterais daquela via estreita. Mais à frente, uma placa azul com letras brancas indicava a direção do Hospital do… Subúrbio. Minha impressão era a de que, quando afinal chegasse no bendito Hospital… do Subúrbio, Ítalo já estaria curado, tal a distância, tal a demora.
Mil e uma noites
Quando criança, sempre gostávamos daqueles filmes com temática árabe. Ali Babá-Babá e etc. E normalmente havia algum personagem que caminhava sedento, horas a fio, sobre as dunas, com um sol inclemente queimando-lhe a pele e os lábios todos rachados. E quando tudo parecia demonstrar que aquele corpo, naquele ritmo, transformar-se-ia, brevemente, em comida de abutres, eis que atrás da última duna vê-se um conjunto de coqueiros emoldurando uma paisagem cheia de verdes e uma fonte de águas límpida funcionando como espelho. Essa foi a sensação que tivemos quando, terminada a ladeira, vimos um prédio inimaginavelmente lindo em meio à mata verde do… Subúrbio. Aquilo poderia ser qualquer coisa, menos a imagem que fiz do Hospital do… Subúrbio.
Estacionamos o carro e, ainda céticos, dirigimo-nos à Portaria. Havia total tranqüilidade na atmosfera. Sentamo-nos com mais algumas pessoas que, confortavelmente, assistiam TV, sentados em poltronas igualmente confortáveis, pisando num chão impecavelmente limpo. Cético, disse a mim mesmo: “Quem vê cara não vê coração!”. Fui até o segurança, um sujeito trajado de paletó preto e gravata idem, que usava um walkie-talkie, e olhava para o ambiente com aquele olhar típico dos guarda-costas, e perguntei. “Irmão, meu filho é um recém-nascido. Ele pode ser atendido com prioridade?”. Disse isso assim mesmo, mas, no íntimo, eu estava dizendo: “Olha aqui, brother, se você não atender meu filho agora, eu vou transformar este prédio em ruínas!!”.
Em geral, nós pais achamos que somos prioritários. “Aguarde um instante, senhor.” Três minutos depois, um terminal instalado na sala de espera anunciava que era a vez de Ítalo. Vânia entrou com o bebê e eu fiquei cá fora, louvando o santo nome do Senhor.
Daí em diante, tudo que eu desejaria para meu filho (nós pais somos bem exigentes) lhe foi oferecido. Todos os funcionários educadíssimos. Os profissionais, profissionais de fato. Tudo limpo, tudo espaçoso, tudo de primeira qualidade. Inquieto, resolvi andar um pouco. Lá fora – já era noite – a iluminação artificial dava ao prédio um ar ainda mais imponente.
Liguei para Maurício, o Apocalíptico, e disse-lhe: “Irmão, se eu te contar você não vai acreditar…” E fui descrevendo para ele o Hospital do… Subúrbio. Mas não há descrição suficiente e suficientemente justa. Agora mesmo, que estou escrevendo a partir de uma lanchonete instalada nas dependências do Hospital, olho para o ambiente e digo a mim mesmo: é mentira.
Buscando compreensão…
Mas meu ceticismo tem suas razões. Ora, qual a imagem que temos dos hospitais públicos? A pior possível. Não é à toa que somos obrigados a ter plano de saúde. Ora, qual a imagem que temos do… subúrbio? Local onde jamais haverá equipamentos públicos de alto nível. Ora, qual a imagem que temos da prestação de serviços de saúde pública? Uma selvageria.
Como eu dia dizendo, estou na lanchonete. Ítalo e seus companheiros de bronquiolite, Gabriel e Igor, ocupam a enfermaria pediátrica. Um aparato tecnológico os circunda. Há um cheiro forte de profissionalismo no ar. Dra. Candice Barros, pediatra que irá acompanhar Ítalo até o final do dia – uma mulher doce, educada e segura do que faz –, cuidadosa e didaticamente me explica o quadro do meu filho: que é bom.
Com a cabeça mais fria, fui ver na internet informações sobre o Hospital do… Subúrbio. Trata-se da mais importante obra feita em parceria entre o poder público e a iniciativa privado.
Se alguém me perguntasse: “Cláudio, quer levar seu filho para casa e cuidar dele por lá?”, minha resposta seria: “Não!”.
E espero que Maurício não me faça mais nenhuma profecia. Exceto se ele profetizar que um dia todos os serviços públicos terão essa qualidade. Depois do que vi aqui, vou acabar acreditando.
Vida longa, Ítalo! Você vai ser preparado para ser Ministro da Saúde. Enquanto isso não acontece, e enquanto você ainda estiver mamando, envidaremos todos os cuidados para que seja tratado como uma pétala de rosa, ou como as asas de uma borboleta: cuidadosamente.
De posse do resultado dos exames, aquela alegria de ouvir que “ele não tem nada, pai”. Vale dizer que eu e a mãe não temos mais nome próprio. Eu sou “pai” e ela é “mãe”. Só. De vez em quando, sob o olhar sempre investigativo de Vânia, dou uma saidinha com ele na rua, pra pegar um solzinho. “Cuidado com esse menino!”. E volto pra dentro de casa para flagrar mais um sorriso dele. Ou algum movimento mais terno. Ou um olhar como nunca já visto. Ou ficar comparando a mão dele com a minha. Ou ficar falando aquelas besteirinhas que só pais bobos dizem: “é ti papai, é ti papai”.
Mas…
Logo nos primeiros dias, ouvimos um choro diferente. Um choro que não constava do repertório. Um choro que a mama não resolvia e que fazia sofrer… muito. “Só pode ser cólica!”, diz, peremptória, minha sobra, mulher experimentada. Dez filhos no curriculum. Eu não duvidei dela. Mas tive imensa dificuldade de aceitar que aquele pequeno corpo já fosse capaz de produzir algo que eu jurava só existir em corpo gente grande: cólica.
Apiedados comigo e com a mãe, amigos, parentes e assemelhados fizeram chover dicas e recomendações e conselhos: “façam isso, façam aquilo!”. Noites e mais noites foram dedicadas às cólicas de Ítalo. E só hoje eu vejo que fui muito imprudente em dedicar diversas noites de minha vida lendo, na rua, vendo filmes e afins. Devia ter dormido quando pude. Hoje, quando olho a cama – e ouço seu convite sedutor sussurrado entre os travesseiros –, digo a ela: “Não posso!”. Ali perto, inconsolável no berço branco e azul, Ítalo chora suas dores. E Maurício, com sua apocalíptica maneira de ser, foi logo me dizendo: “Se prepare, meu fi; isso é só o começo!”. Palavras têm poder e profecias tendem a se cumprir.
As cólicas arrefeceram e, mesmo quando vêm, a gente já dispõe de todo um aparato tecnológico, todo um conhecimento sobre as melhores práticas de debelar ou atenuar a dor. Mas – e aqui se cumpre a profecia – há cinco dias, Ítalo – essa caixinha de surpresas – apresentou dificuldades na respiração, secreção nasal, tosse seca e desconfortos mil nas vias aéreas. Nova leva de noites intermináveis!
Nossa pediatra foi enfática: “Levem para internar!”. Saímos com Ítalo do consultório transtornados. E logo ficamos sabendo – depois de algumas andadas – que Ítalo não era o único e que o mal que o afligia chamava-se pomposamente de bronquiolite aguda e que o vírus causador da mesma não se contentara com Ítalo. Mei-mundo de meninos na Cidade do Salvador ocupavam todos os leitos pediátricos. Na clinica, o médico nos disse: “Quer um conselho?”. “Queeerrooo!!”, disse eu. “Vá agora pro Hospital do Subúrbio. Lá seu filho estará bem servido e em boas mãos. Conheço quatro médicos lá e posso lhe assegurar que ali está um porto seguro. Só é um pouco longe…”.
Céticos, visitamos outros hospitais próximos à nossa casa (moramos nas imediações do Dique Tororó). Não havia vagas. Preconceituosos, hesitamos e relutamos muito com a idéia de levar Ítalo para um hospital com o nome de… Subúrbio. Mas, desesperados (não há outra palavra que melhor designe pais com filho recém-nascidos doentes), decidimos seguir o conselho do nosso médico.
“Só é um pouco longe.”
Saímos do Centro de Salvador, chegamos à Cidade Baixa e seguimos rumo ao Hospital do… Subúrbio. No banco de trás, Vânia chorando e Ítalo no seu colo: frágil como uma asa de borboleta ou como uma pétala de rosa, tossindo, com obstrução nasal e chorando também. Um quadro que nem mesmo o mais apocalíptico dos profetas mauricianos poderia pintar. Chegamos numa estrada erma. Só havia mato nas laterais daquela via estreita. Mais à frente, uma placa azul com letras brancas indicava a direção do Hospital do… Subúrbio. Minha impressão era a de que, quando afinal chegasse no bendito Hospital… do Subúrbio, Ítalo já estaria curado, tal a distância, tal a demora.
Mil e uma noites
Quando criança, sempre gostávamos daqueles filmes com temática árabe. Ali Babá-Babá e etc. E normalmente havia algum personagem que caminhava sedento, horas a fio, sobre as dunas, com um sol inclemente queimando-lhe a pele e os lábios todos rachados. E quando tudo parecia demonstrar que aquele corpo, naquele ritmo, transformar-se-ia, brevemente, em comida de abutres, eis que atrás da última duna vê-se um conjunto de coqueiros emoldurando uma paisagem cheia de verdes e uma fonte de águas límpida funcionando como espelho. Essa foi a sensação que tivemos quando, terminada a ladeira, vimos um prédio inimaginavelmente lindo em meio à mata verde do… Subúrbio. Aquilo poderia ser qualquer coisa, menos a imagem que fiz do Hospital do… Subúrbio.
Estacionamos o carro e, ainda céticos, dirigimo-nos à Portaria. Havia total tranqüilidade na atmosfera. Sentamo-nos com mais algumas pessoas que, confortavelmente, assistiam TV, sentados em poltronas igualmente confortáveis, pisando num chão impecavelmente limpo. Cético, disse a mim mesmo: “Quem vê cara não vê coração!”. Fui até o segurança, um sujeito trajado de paletó preto e gravata idem, que usava um walkie-talkie, e olhava para o ambiente com aquele olhar típico dos guarda-costas, e perguntei. “Irmão, meu filho é um recém-nascido. Ele pode ser atendido com prioridade?”. Disse isso assim mesmo, mas, no íntimo, eu estava dizendo: “Olha aqui, brother, se você não atender meu filho agora, eu vou transformar este prédio em ruínas!!”.
Em geral, nós pais achamos que somos prioritários. “Aguarde um instante, senhor.” Três minutos depois, um terminal instalado na sala de espera anunciava que era a vez de Ítalo. Vânia entrou com o bebê e eu fiquei cá fora, louvando o santo nome do Senhor.
Daí em diante, tudo que eu desejaria para meu filho (nós pais somos bem exigentes) lhe foi oferecido. Todos os funcionários educadíssimos. Os profissionais, profissionais de fato. Tudo limpo, tudo espaçoso, tudo de primeira qualidade. Inquieto, resolvi andar um pouco. Lá fora – já era noite – a iluminação artificial dava ao prédio um ar ainda mais imponente.
Liguei para Maurício, o Apocalíptico, e disse-lhe: “Irmão, se eu te contar você não vai acreditar…” E fui descrevendo para ele o Hospital do… Subúrbio. Mas não há descrição suficiente e suficientemente justa. Agora mesmo, que estou escrevendo a partir de uma lanchonete instalada nas dependências do Hospital, olho para o ambiente e digo a mim mesmo: é mentira.
Buscando compreensão…
Mas meu ceticismo tem suas razões. Ora, qual a imagem que temos dos hospitais públicos? A pior possível. Não é à toa que somos obrigados a ter plano de saúde. Ora, qual a imagem que temos do… subúrbio? Local onde jamais haverá equipamentos públicos de alto nível. Ora, qual a imagem que temos da prestação de serviços de saúde pública? Uma selvageria.
Como eu dia dizendo, estou na lanchonete. Ítalo e seus companheiros de bronquiolite, Gabriel e Igor, ocupam a enfermaria pediátrica. Um aparato tecnológico os circunda. Há um cheiro forte de profissionalismo no ar. Dra. Candice Barros, pediatra que irá acompanhar Ítalo até o final do dia – uma mulher doce, educada e segura do que faz –, cuidadosa e didaticamente me explica o quadro do meu filho: que é bom.
Com a cabeça mais fria, fui ver na internet informações sobre o Hospital do… Subúrbio. Trata-se da mais importante obra feita em parceria entre o poder público e a iniciativa privado.
Se alguém me perguntasse: “Cláudio, quer levar seu filho para casa e cuidar dele por lá?”, minha resposta seria: “Não!”.
E espero que Maurício não me faça mais nenhuma profecia. Exceto se ele profetizar que um dia todos os serviços públicos terão essa qualidade. Depois do que vi aqui, vou acabar acreditando.
Vida longa, Ítalo! Você vai ser preparado para ser Ministro da Saúde. Enquanto isso não acontece, e enquanto você ainda estiver mamando, envidaremos todos os cuidados para que seja tratado como uma pétala de rosa, ou como as asas de uma borboleta: cuidadosamente.
Luiz Cláudio Sena é filósofo
Nenhum comentário:
Postar um comentário